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Segunda, 07 de agosto de 2017

Brilhante por natureza

Reconhecido como bem de valor cultural e patrimônio histórico do Tocantins, o capim-dourado tem no desmatamento a principal ameaça à sua conservação e manejo sustentável

Luciana Morais - redacao@revistaecologico.com.br



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Capim-dourado (Syngonanthus nitens): seu nome remete  beleza do ouro e nitens, que significa

Capim-dourado (Syngonanthus nitens): seu nome remete beleza do ouro e nitens, que significa"que brilha". Foto: Divulgao/Secom/TO

Segundo maior bioma em extensão do Brasil, depois da Amazônia, o Cerrado ocupa 24% do território nacional. Com enorme diversidade de plantas e animais, ele também se destaca pela força de trabalho e pela riqueza cultural de seus povos, tais como indígenas, quilombolas, sertanejos e ribeirinhos, que há várias gerações usam os recursos oferecidos pela natureza para subsistência e geração de renda.

O potencial de uso dos produtos do Cerrado é enorme. São sementes, flores, frutas, folhas, raízes, cascas, látex, óleos e resinas destinados tanto à alimentação quanto à produção de remédios, utensílios domésticos, ferramentas e artesanato.

Entre os chamados Produtos Florestais Não-Madeireiros (PFNMs) desse rico bioma, um dos mais conhecidos é o artesanato produzido a partir das hastes florais do capim-dourado (Syngonanthus nitens). Seu nome remete à beleza e ao brilho do ouro e nitens; em latim, significa “que brilha”.

O uso dessa espécie se popularizou no estado do Tocantins, onde é reconhecida como bem de valor cultural e patrimônio histórico, com base na Lei nº 2.106, de 2009. É de lá que se distribui para o restante do Brasil – e também para o exterior – a maior parte da produção de capim-dourado em forma de artesanato.

Apesar de seu nome popular, o capim-dourado é na verdade um tipo de sempre-viva e pertence à família Eriocaulaceae. Encontrado em áreas de Campos Limpos Úmidos em todo o Cerrado brasileiro, ele tem o formato de uma roseta e mede cerca de três a quatro centímetros de largura, mas pode atingir até o triplo desse tamanho e sobreviver por mais de 10 anos.

Seus escapos, ou hastes florais, produzidos anualmente no centro da roseta são usados na manufatura do artesanato tocantinense há pelo menos 90 anos, costurado com a seda (ou fita) do buriti. O brilho dourado e a versatilidade da planta inspiram a produção de peças utilitárias e ornamentais, em especial cestos, objetos de decoração e de arte, além de bolsas e bijuterias.

 

Herança indígena

Historicamente, o artesanato de capim-dourado do Tocantins era feito apenas por indígenas da etnia Xerente. As peças produzidas eram destinadas ao uso doméstico ou trocadas por outros produtos. Por volta de 1930, a arte de tecer o capim foi aprendida por famílias do Povoado da Mumbuca, na região do Jalapão, ao Leste do estado, quando um grupo de Xerentes acampou na região.

Mas somente a partir de meados de 1990 as peças de capim-dourado se tornaram mais conhecidas e vendidas. Foi quando o governo estadual e as prefeituras da região, especialmente a de Mateiros, onde fica o Povoado da Mumbuca, iniciaram as primeiras ações de incentivo à produção do artesanato, levando os artesãos para exporem seus produtos em feiras na capital, Palmas, e em cidades vizinhas.

Nos últimos anos, o interesse pelo artesanato feito com a planta cresceu muito, preocupando e mobilizando as comunidades extrativistas, em função do excesso de coleta e até mesmo da presença de contrabandistas de outras regiões. Isso fez com que buscassem apoio junto aos governos federal, estadual e a diferentes instituições, visando à realização de pesquisas e à criação de parcerias para assegurar a manutenção da atividade de forma segura, sustentável e rentável.

Como resultado, o Sebrae, por exemplo, em conjunto com a Fundação Cultural do Tocantins, ofereceu cursos para ensinar os artesãos a confeccionarem novos tipos de peças, aprimorando o seu acabamento e a sua qualidade. Essa capacitação possibilitou a realização das primeiras vendas de produtos em maior escala. Paralelamente, o Jalapão também se tornou um novo e importante destino do turismo de aventura no Brasil, contribuindo para impulsionar ainda mais as vendas do artesanato local.

 

Uso sustentável

Desde 2002, a ONG Pequi – Pesquisa e Conservação do Cerrado, em parceria com o Ibama, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Universidade de Brasília e o Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), desenvolve pesquisas na região do Jalapão, para promover a conservação e o uso sustentável do capim-dourado e dos Campos Úmidos, com o apoio de representantes de Unidades de Conservação (UCs) e das comunidades extrativistas.

Atualmente, mais de 50 associações trabalham com artesanato em capim-dourado no Tocantins, totalizando cerca de 1.500 cadastrados. A comercialização dos produtos gera ganhos de até dois salários mínimos/mês para cada artesão, sendo uma importante alternativa de renda, em especial para as mulheres. Os produtos podem ser encontrados em feiras, lojas e aeroportos de várias capitais brasileiras e também fora do Brasil.

 

Entenda melhor:

- Para assegurar que a colheita seja sustentável, o Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins) vem regulamentando o manejo do capim-dourado desde 2004, por meio de três portarias. Suas hastes só podem ser colhidas depois de 20 de setembro, quando já estão secas e brilhosas.

- As sementes já maduras ficam no campo para germinar e originar novas plantas, que não são arrancadas e, assim, produzem mais hastes nos próximos anos. As sementes são bem pequenas, têm cor marrom e medem menos de um milímetro (parecem uma poeira).

- A colheita do capim-dourado ainda verde prejudica a espécie, pois impede a sua regeneração natural, podendo levar à morte da planta.

- As principais áreas de colheita do capim-dourado ficam no interior de Unidades de Conservação (UCs) de proteção integral, principalmente no Parque Estadual do Jalapão e na Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins.

- Nesses locais, a prática é amparada pela assinatura de Termos de Compromisso entre as comunidades locais e as UCs, bem como em unidades de uso sustentável, como a Área de Proteção Ambiental (APA) do Jalapão e a APA da Serra da Tabatinga.

- Além de colher em Campos Úmidos perto de suas casas, as famílias extrativistas da região do Jalapão costumam montar acampamentos em áreas mais afastadas, onde trabalham por alguns dias. Um extrativista consegue colher, em média, cerca de 30 quilos de capim-dourado por dia trabalhado.

- A seda usada para costurar o artesanato de capim-dourado é retirada das folhas jovens ainda não expandidas (ou olho) do buriti (Mauritia flexuosa). Típico das veredas do Cerrado, o buriti também é encontrado em Matas de Galeria, em áreas permanentemente inundadas.

- Há registro de artesãos de capim-dourado em atividade também no Norte de Goiás e no Oeste da Bahia.

 

Produção de artesanato é garantia de renda para mulheres da região. Foto: Divulgação/Secom/TO

 


 

A senhora participou da elaboração do Projeto de Lei de Uso Sustentável do Capim-dourado e do Buriti, aprovado no fim do ano passado pelo Conselho do Meio Ambiente do Tocantins (Coema). Qual o status atual do processo e a importância de se estabelecer essa regulamentação?

O projeto de lei segue no Coema e deverá ser apresentado à Assembleia Legislativa quando a Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh) julgar oportuno. Transformar a regulamentação da colheita do capim-dourado e do buriti – atualmente resguardada por portarias – em lei é importante, porque a lei é um instrumento mais eficaz e poderá ser aplicada e fiscalizada por mais instituições. Com isso, a colheita do capim-dourado em época inadequada e o transporte ilegal da matéria-prima para fora do Tocantins, que configura tráfico, poderão ser fiscalizados por outros órgãos além do Naturatins, entre eles a Polícia Ambiental, a Agência de Defesa Agropecuária (Adapec/TO), o ICMBio, etc.

 

Qual é a realidade da espécie hoje em termos de conservação e das principais ameaças?

Uma das principais ameaças é a mudança de uso da terra (desmatamento), que coloca em risco todas as espécies do Cerrado e o bioma inteiro, que hoje é devastado em uma taxa altíssima, sendo cinco vezes maior que o desmatamento da Amazônia! Além disso, a colheita precoce (antes de 20 de setembro), quando as hastes ainda não estão maduras, é o que causa maior impacto sobre o capim-dourado.

 

Há ações destinadas a aperfeiçoar o seu processamento, visando tanto agregar maior valor a artesanato produzido quanto assegurar melhor retorno financeiro às famílias extrativistas?

Quanto mais organizadas forem as associações de artesãos para que as vendas sejam feitas apenas por meio delas, inclusive para lojistas e outros grandes compradores fora do Jalapão, melhor será a renda dos artesãos. A Central do Cerrado é uma cooperativa que contribui muito para essa geração de renda e comércio justo (www.centraldocerrado.org.br/produtos).

 

Poderia dar dicas de conservação para quem tem artigos de decoração ou acessórios de capim-dourado?

Comprar sempre de fornecedores que respeitam as comunidades extrativistas e sabem a origem dos produtos que vendem. Isso pode ser feito por meio de contato com a Central do Cerrado ou com as próprias associações. O capim-dourado colhido fora de época (precoce) não é muito brilhante e tem variação de cores entre as hastes, com algumas parecendo quase verdes. Não compre esses produtos e informe o fornecedor que ele pode estar contribuindo para a extinção da espécie e a redução da geração de renda das comunidades que fazem extrativismo responsável e sustentável. As peças podem durar décadas, contando que não sejam molhadas. 

 

Fique por dentro:

- Berço de 5% de toda a biodiversidade do planeta, o Cerrado é reconhecido como a savana mais rica do mundo. Abriga mais de 11 mil espécies de plantas nativas catalogadas e está presente nos estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal. Tem, ainda, encraves no Amapá, Roraima e Amazonas.

- Nos últimos 40 anos, praticamente metade da vegetação do Cerrado foi desmatada para dar lugar, em sua maioria, à implantação de grandes áreas de pastagem e agricultura. Tais atividades ameaçam sua conservação e equilíbrio ecossistêmico, afetando sobretudo as nascentes que formam as três maiores bacias hidrográficas da América do Sul: Amazônica/Tocantins, São Francisco e Prata.

 

Ficha técnica:

Nome científico: Syngonanthus nitens

Família botânica: Eriocaulaceae

Nome comum: capim-dourado

Porte da planta: herbácea, rosetas de 3 a 4 cm de largura

Área de ocorrência: Campos Úmidos do Cerrado

Floração: julho a agosto

Amadurecimento das sementes: setembro

Dispersão das sementes: outubro e novembro

Hastes por planta: duas (em média)

Tamanho das sementes: menos de 1 mm

 

Fontes/Pesquisa bibliográfica

Cartilha “Boas Práticas de Manejo para o Extrativismo Sustentável do Capim-Dourado & Buriti”, Embrapa - Recursos Genéticos e Biotecnologia e Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), autores: Maurício Bonesso Sampaio, Isabel Belloni Schmidt, Isabel Benedetti Figueiredo e Paulo Takeo/MMA/Naturatins. Disponível em: goo.gl/gRDFzd

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