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Segunda, 14 de maio de 2018

Dentro de cada mulher há uma Madalena

Déa Januzzi - redacao@revistaecologico.com.br



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O filme empodera uma personagem até então obscura da bíblia.

O filme empodera uma personagem até então obscura da bíblia.

Foi o que confirmaram 39 mulheres do interior de Minas após assistirem ao polêmico filme “Maria Madalena”, de Garth Davis

 

Com direito a pipoca, caixa de chocolate língua de gato, a companhia e os comentários de Magdala Ferreira Guedes (você verá que o nome dela não é mera coincidência), assisti ao filme “Maria Madalena”, de Garth Davis, que vem balançando as estruturas do catolicismo tradicional. No caminho para ver o longa-metragem no cinema, pensava nas aulas de religião dos colégios católicos da minha infância, onde Madalena, considerada prostituta, só não foi apedrejada porque Jesus Cristo interferiu e disse: “Aquele que não tiver pecado, atire a primeira pedra”.

Mais do que a história de violência contra uma mulher tida como pecadora, jamais me esqueci desta frase que me seguiu na infância, adolescência, passando pela vida adulta e até hoje, no crepúsculo da existência. A Maria Madalena de antigamente era pecadora, mas sempre corri para resgatar, em mim e nas mulheres em geral, a outra imagem. Uma Madalena revolucionária, companheira de Cristo, uma mulher simples e gentil, mas forte, que não seguia as ordens estabelecidas da época. Aquela que também levou a mensagem de Cristo pelo mundo, foi testemunha da sua crucificação e ressurreição.

Antes de ver o filme que liberta Maria Madalena das feridas ancestrais, do pecado, da culpa e da tirania do mundo masculino, conheci Magui – como Magdala Guedes é chamada – e desde 2005 reúne mulheres em busca da cura dessas feridas históricas, desses preconceitos e dos grilhões da religião. Isso acontece em meio à natureza preservada do Sítio Sertãozinho, em Moeda (MG), a 45 km de Belo Horizonte. É onde elas dançam, cantam, conversam e se restauram.

Magui sabia que Maria Madalena, assim como todas as mulheres, carregava o peso da cruz sozinha, banida da bíblia e de sua verdadeira história, que era preciso resgatar a imagem de Maria Madalena e buscar o sagrado que há no feminino. E, claro, também no masculino até então inflexível.

Enquanto seguia para o cinema, lembrei-me de um tempo em que fazia acupuntura com a terapeuta Josefina, indicada por Magui. Após meses de sessões e de cura, ela me perguntou por que eu, como mulher, não era tão gentil e poética como os meus textos. Paralisei com o questionamento e descobri que, na época, para entrar no mundo do trabalho, tive que simbolicamente me transformar em um soldado, com  botas e coturnos, para me impor, para lutar por um lugar igualitário com os homens.

Na minha infância sequer poderia mastigar a hóstia na hora da comunhão. Tinha medo que ela sangrasse. Era um horror. Parei de ir à missa.

Encontrei-me com Magui na porta do cinema. Ela ia assistir ao filme pela terceira vez. Era como se fosse coautora da película, como se dirigisse a própria vida.

Estudiosa de ervas medicinais, Magui vive em comunhão com a sua natureza de mulher, esposa e mãe, no seu refúgio rural e terapêutico. É conhecida também pelo Ritual do Pão, que ela realiza há mais de 20 anos, colocando intenções na massa.  Mas a jornada “De volta para casa” com as Madalenas começou no seu aniversário de 60 anos, em Israel, onde foi visitar o filho mais velho que então morava lá. Hoje, aos 67, ela conta que, ao entrar numa loja para comprar um livro chamou sua atenção um de capa vermelha, escrito em letras douradas “A vida de Maria Madalena”.

Em quatro dias, ela leu o livro de 700 páginas, onde estava escrito “Dentro de cada mulher vive uma Madalena”. A partir daí, Magui começou a convidar as mulheres que conhecia para uma jornada de cura do feminino marginalizado. Foram 70 mulheres que viveram na pele de Madalena por quase 12 anos, e hoje estão em paz consigo mesmas, unidas por uma nova aliança.

Magui me chama a atenção  antes para uma passagem do filme: “A gentileza, a cumplicidade, a comunicação de Maria Madalena com Jesus por meio de olhares. A coragem sustentada pela fé”. A cena de Maria, mãe de Jesus, que se encontra com Madalena, também é de arrepiar: “Você ama meu filho? O que Deus te pediu? Ele deve ter pedido muito. Se você ama meu filho deve estar preparada para perdê-lo como eu”.

Uma cena real nos chama a atenção. Uma senhora de cabelos brancos se retira do cinema no meio da sessão. Não aguentou a nova imagem mostrada de Maria Madalena. Acostumou-se com a Madalena endemoniada da Bíblia. Magui se entristece com a retirada da senhora. Sabe que até o Papa Francisco a redimiu e a colocou num lugar de honra, chamando-a de “a apóstola dos apóstolos”. E foi em homenagem ao Papa Francisco que 39 mulheres – e um homem, o economista Sérgio da Luz Moreira – resolveram bordar um panô, que será entregue a Francisco e cuja mensageira será uma freira. Ela entregará o pano decorativo, com 2,20 metros de largura por 1,30 de comprimento nas mãos do Papa, no Vaticano. Junto vai uma carta que foi traduzida para o espanhol, língua de origem de Francisco.

Quem coordenou o panô foi Cláudia Martins, de 53 anos, uma das 70 Madalenas que fez a jornada “De volta para Casa”. Ela é do primeiro grupo de Magui, de 2005, e exímia bordadeira. Por mais de um ano, ela conduziu os bordados com capricho e devoção. Antes, selecionou as várias faces e nomes de Nossa Senhora para o sorteio entre os participantes. E cada um bordou a sua santa.

Cláudia tirou Nossa Senhora Aparecida. “O bordado mudou a minha vida. Tenho que falar em antes e depois dele. Ao alinhavar o bordado, ia conversando com Nossa Senhora Aparecida. Era uma oração e a paz ia fluindo dentro de mim.” Ela esteve presente também na estreia do filme de Maria Madalena, numa sessão especial junto com as outras “madalenas”. Conforme combinado, compareceram em peso, com seus mantos e capuzes. E também com direito a flores de cor rosa, símbolo do cuidado essencial e de cura.  

O filme termina e pressinto que sempre levei Madalena na alma. Uma frase me sopra aos ouvidos: “Por mais Madalenas no mundo”.

 

A Carta das Madalenas de Minas para Francisco

Perdoe-nos, Francisco, por chegar assim tão de repente, sem cerimônia, chamando-te pelo nome. Não dá para te nomear de Sumo Pontífice ou Sua Santidade. Pois és o Papa do século XXI, um revolucionário como Jesus. Perdoe-nos por te comparar a Jesus. Mas tu, Papa Francisco, também chegaste com simplicidade, compaixão, ternura e gentileza para redimir as mulheres de todas as culpas católicas, que foram pregadas na cruz de suas vidas. Para rever o rastro de machismo que contaminou a Igreja. Tu és o papa da alegria, da fraternidade, do perdão e da esperança. Vens curando todas as nossas feridas ancestrais abertas por um mundo masculino autoritário e inflexível, que diminuiu, baniu, pisoteou, enclausurou, incendiou, excluiu, maltratou e infernizou o feminino.

Tu és o papa que devolveste o poder às mulheres, assim como fizeste com Maria Madalena, elevando-a ao posto de “a apóstola dos apóstolos”. Dando um lugar de honra à Madalena e às mulheres neste mundo atual, tão caótico. Tu és o mensageiro de um novo mundo, sem distinção de gênero, de raça, ou entre pobres e ricos. Tu és o exemplo de como devemos respeitar a Mãe Terra e também a natureza interior de cada mulher.

Aqui, deste front feminino, que fica em Moeda, Minas Gerais, Brasil, 39 mulheres encontraram um jeito especial de mostrar gratidão a um papa que aboliu preconceitos e absolveu as mães solteiras declarando: “Mãe não é estado civil. Mãe é mãe e pronto”. Um jeito de agradecer a um papa que parou de excomungar as mulheres que praticaram aborto em algum momento difícil de suas vidas. Um papa que fala coisas assim: “A mulher é que dá harmonia ao lar. Não está aqui para lavar louças”.

Tu és muito mais a Igreja de Maria Madalena do que a de Pedro. Tu és a Igreja do cuidado essencial, que não guerreia, mas acolhe, comunga e compartilha. A Igreja sem penitências e martírios desnecessários, sem os pesados grilhões de dogmas ultrapassados. Sem o peso da Inquisição.

Tu és a Igreja dos dias atuais, mais leve e livre.  A Igreja do coletivo e não do individualismo. Uma igreja sem pecados cometidos, sem culpa, sem demônios e sem o fogo do inferno, pois só tu sabes que o inferno é aqui, como tens sentenciado aos quatro cantos.

Foi pensando em ti, Papa Francisco, que 39 mulheres mineiras bordaram um manto em sua homenagem. A jornada de cura dessas mulheres foi longa como a de Maria Madalena, em busca do autocuidado, da delicadeza, mas sem vacilo, sem medo, com a ousadia que só as mulheres têm. Guiadas pela espiritualidade de Magdala Guedes, sob a inspiração de Maria Madalena, elas bordaram o manto que agora chega em tuas mãos com as linhas e cores do feminino ressuscitado por tu.

Um presente bordado com as cicatrizes da alma feminina, para anunciar o amanhecer de um novo tempo. Unidas, essas mulheres lhe dão graças: “Bendito Francisco!”

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