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Segunda, 14 de maio de 2018

A malária

Eugênio Goulart - redacao@revisraecologico.com.br



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A doença, também é conhecida por

A doença, também é conhecida por "maleita", "sezão", "impaludismo" e "febre palustre", é causada por um protozoário do gênero Plasmodium.

A malária é uma doença causada por protozoários do gênero Plasmodium, sendo transmitida pelo mosquito Anopheles. Provoca no organismo humano uma infecção aguda e crônica, em surtos, resultando em febre intermitente, anemia e aumento do baço. Recebe também os nomes de maleita, sezão, impaludismo e febre palustre. No período do Brasil Colônia era conhecida também por “carneirada”. Foi a febre que matou o bandeirante Fernão Dias, na região central de Minas Gerais, em 1681, quando voltava para São Paulo, após sete anos perambulando pelo sertão em busca das esmeraldas.

O tratamento, desde tempos antigos, era com a droga quinino, retirada da casca da árvore conhecida como cinchona. Todavia, os parasitas progressivamente foram adquirindo resistência; mais recentemente, são utilizados medicamentos sintéticos mais eficientes, como a cloroquina e a primaquina.

Atualmente a malária é um sério problema de saúde pública no mundo, em especial na África; no Brasil, ainda está fora de controle na região amazônica.

Em Itaguara, na década de 1930, a malária grassava por toda a região rural. Muitas fazendas foram abandonadas à medida que a epidemia se alastrava. O doutor João atendia muitos pacientes, e na parte final do poema Maleita, do livro Magma, descreve um diálogo entre dois compadres, ambos acometidos pelo acesso febril:

- “Que frio!... que fri-í-io!... Que mosquitada brava!...

Estou com a sezão dos três dias...

Ei, Compadre, vamos quentar sol naquela pedra?...”

- “Volta pra casa, Compadre, deixa de bater queixo,

vai cortar a febre com cachaça com limão...”

- “Você também está tremendo?!...

Que frio!... Tudo treme!...

Olha os pernilongos

zunindo nos meus ouvidos!...

Olha o quinino zunindo

dentro dos meus ouvidos!...

Que frio! [...]”

Nesse poema, escrito por Rosa em 1933, um ano após deixar Itaguara, porém publicado somente em 1997, é interessante observar a citação de um frequente efeito colateral do quinino, que eram os zumbidos.

Todo o enredo do conto Sarapalha, do livro Sagarana, gira em torno da malária. Aliás, Sezão foi o primeiro nome do conto, antes da denominação definitiva de Sarapalha. Várias informações sobre a doença são apresentadas de forma bastante original: O mosquito fêmea não ferroa de dia; está dormindo com a tromba repleta de maldades [...].

O interessante é que no primeiro texto, quando o livro ainda se chamava Contos, estava escrito “tromba repleta de esporozoítos”, mas na versão final de Sagarana o nome técnico foi substituído por “maldades”. Guimarães Rosa revia várias vezes seus textos, até considerá-los como definitivos; esse exemplo mostra seu cuidado em tornar o livro de leitura mais fácil para o leigo. Um detalhe científico também importante, referido antes, é o fato de que somente a fêmea do Anopheles é hematófaga, sendo que o macho se alimenta da seiva de plantas.

Ainda no conto Sarapalha, surgem informações sobre outras características do agente transmissor da malária e seu hábito predominantemente noturno:

Mas ambos escutaram o mosquito a noite inteira. E o anofelino é o passarinho que canta mais bonito, na terra bonita onde mora a maleita. [...] E uma a uma, aquelas [fêmeas de mosquito] já fartas de sangue, abrem recitativo, esvoaçantes, uma oitava mais baixo, em meia voz de descante, na orgia crepuscular.

O conto Sarapalha, que é uma recriação em prosa do poema “Maleita”, do livro Magma, prossegue com a descrição dos personagens principais, os primos Argemiro e Ribeiro:

Manhãzinha fria. Quando os dois velhos - que não são velhos - falam, sai-lhes da boca uma baforada branca, como se estivessem pitando. Mas eles ainda não tremem: frio mesmo frio vai ser d’aqui a pouco.[...] O sol cresce, amadurece. Mas eles estão esperando é a febre, mais o tremor. Primo Ribeiro parece um defunto - sarro de amarelo na cara chupada, olhos sujos, desbrilhados, e as mãos pendulando, compondo o equilíbrio, sempre a escorar dos lados a bambeza do corpo.

O quadro clínico da malária se caracteriza por períodos intermitentes de febre, acompanhada de calafrios, náuseas e cefaleia, resultando na debilitação progressiva do paciente. No parágrafo citado anteriormente, Guimarães Rosa refere-se à cor amarela da face dos dois primos: “sarro de amarelo na cara chupada”. É a icterícia, causada pela grande destruição de hemácias provocada pelos parasitas na circulação sanguínea.

O ciclo de reprodução do Plasmodium no organismo humano se dá geralmente de 48 em 48 horas (malária ternária), ou de 72 em 72 horas (malária quaternária), quando ocorrem os acessos paroxísticos de febre. Muitas vezes o paciente apresenta quadros febris mais frequentes, devido ao intenso parasitismo:

Mas ele tem no baço duas colméias de bichinhos maldosos, que não se misturam, soltando enxames no sangue em dias alternados. E assim nunca precisa de passar um dia sem tremer.

Rosa faz referência ao acometimento do baço; de fato, o aumento desse órgão, ou seja, a esplenomegalia, faz parte do quadro clínico da malária. Algumas vezes o tamanho do baço chega a fazer protuberância no abdome do paciente.

Mesmo atualmente, a mortalidade provocada pela malária ainda é uma realidade nas áreas endêmicas. De certa forma, quem lida hoje com o problema sofre também das mesmas angústias que acometiam o jovem médico:

- Talvez que para o ano ela não volte, vá s’embora... Ficou. Quem foi s’embora foram os moradores: os primeiros para o cemitério, os outros por aí afora, por este mundo de Deus.

O diálogo seguinte, também no conto Sarapalha, tem tudo a ver com a vivência do visionário doutor João em Itaguara, a enfrentar um incontrolável surto de malária que invadia todo o redor do município:

- Primo Ribeiro, o senhor gosta daqui?...

- Que pergunta! Tanto faz... É bom, p’ra se acabar mais ligeiro... O doutor deu prazo de um ano... Você lembra?

- Lembro! Doutor apessoado, engraçado... Vivia atrás dos mosquitos, conhecia as raças lá deles, de olhos fechados, só pela toada da cantiga... Disse que não era das frutas e nem da água... Que era o mosquito que punha um bichinho amaldiçoado no sangue da gente... Ninguém não acreditou... Nem no arraial. Eu estive lá, com ele...

- Primo Argemiro, o que adianta...

- ... E então ele ficou bravo, pois não foi? Comeu goiaba, comeu melancia da beira do rio, bebeu água do Pará, e não teve nada...

- Primo Argemiro...

- ... Depois dormiu sem cortinado, com janela aberta... Apanhou a intermitente, mas o povo ficou acreditando...

A descrença da população em relação à transmissão pelo mosquito era comum. Há séculos, a doença era considerada como proveniente de “maus ares”, binômio que deu origem ao nome malária. Era a antiga teoria dos miasmas, que incriminava as emanações de charcos pestilentos como causa de muitas doenças. No diálogo anterior, o doutor até “bebeu água do Pará”, na tentativa de provar que ela não era a causa do mal. O Pará aqui se refere ao Rio Pará, situado próximo a Itaguara, que fica em sua bacia hidrográfica.

Ainda no conto Sarapalha, encontra-se talvez um relato da partida de Guimarães Rosa de Itaguara, o doutor João encerrando uma etapa de sua vida. Como confessou posteriormente, não conseguia aceitar qualquer tipo de fracasso na sua profissão médica. E a malária, em toda a região, era então imbatível. Teria sido uma decisão tranquila? No texto adiante, deve-se atentar para a frase “Estava muito triste...”:

- Escuta Primo Ribeiro: se alembra de quando o doutor deu a despedida p’ra o povo do povoado? Foi de manhã cedo, assim como agora... O pessoal estava todo sentado nas portas das casas, batendo queixo. Ele ajuntou a gente... Estava muito triste... Falou: - “Não adianta tomar remédio, porque o mosquito torna a picar... Todos têm de se mudar daqui... Mas andem depressa, pelo amor de Deus!”...

No final do conto Sarapalha, um sentimento derrotista. É como se a malária tivesse mesmo vencido e tomado conta de tudo, inclusive de toda a natureza:

Estremecem, amarelas, as folhas de aroeira. Há um frêmito nos caules rosados da erva-de-sapo. A erva-de-anum crispa as folhas [...] Trepidam, sacudindo as suas estrelinhas alaranjadas, os ramos da vassourinha. Tirita a mamona [...] É o mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão.

A palavra “frêmito”, que significa vibração, é um termo muito utilizado na prática médica, como, por exemplo, para descrever um sopro cardíaco de tal intensidade que provoca um frêmito perceptível na palpação da parede do tórax.

No livro Grande Sertão: Veredas (foto acima) são várias as referências à malária. O enredo se desenrola no Norte de Minas Gerais, por volta do início dos anos de 1900. Naquela época, a doença era endêmica em toda a região:

[...] esses buracões precipícios - grotão onde cabe o mar, e com tantos enormes degraus de florestas, o rio passa lá no mais meio, oculto no fundo do fundo, só sob o bolo de árvores pretas de tão velhas, que formam mato muito matagal. Isto é um vão. E num vão desses o senhor fuja de ir descer e ir ver, ainda que não faltem as boas trilhas de descida, no barranco matoso escalavrado, entre as moitarias de xaxim. Ao certo que lá embaixo dá onças - que elas vão parir e amamentar filhos nas sorocas; e anta velhusca moradora, livre de arma de caçador. Mas o que eu falo é por causa da maleita, da pior: febre, ali no oco, é coisa, é grossa, mesma. Terçã maligna, pega o senhor; a terçã brava, que pode matar perfeito o senhor, antes do prazo de uma semana.

A “terçã maligna” é provocada pelo Plasmodium falciparum e de fato apresenta maior gravidade. Sem tratamento, com frequência evolui para o óbito. Os médicos ainda a chamam de malária maligna.

No Norte de Minas grassava, além da malária, a varíola, popularmente conhecida também como “bexiga brava”.

No texto adiante há uma breve referência a essa doença, mas Riobaldo fala mesmo é da “intermitente”. A palavra “sezonático” significa uma região onde certamente se pegava malária:

Refiro ao senhor que, da bexiga-brava, não. Mas de outras enfermidades. Febres. Em algum trecho, por falta de sinal, a gente devia de ter arranchado no sezonático. Agora, a maior parte dos companheiros tremiam em prazos, com a intermitente. Remédio que valesse, de todo faltava. Aquilo afracava, no diário; os homens perdiam a natureza. E um andaço de defluxo, que também me baqueou.

Novamente o uso da expressão “um andaço de defluxo”, para significar estado gripal com coriza. E mais uma vez a teoria dos miasmas, ainda no Grande Sertão: Veredas, quando Riobaldo cria mais um neologismo: [...] que ali miasmava braba maleita [...]. No mesmo livro existem mais algumas citações à malária: Daí, mais para adiante, dei para tremer com uma febre. Terçã.

Por último, mesmo em textos mais recentes, Guimarães Rosa recorda-se de seus tempos de médico da roça. No livro Tutaméia, publicado em 1967, o conto Arroio-das-Antas faz a seguinte referência à malária: Aonde - o despovoado, o povoadozinho palustre, em feio o mau sertão - onde podia haver assombros?

 

Na próxima edição, o autor destaca trechos de obras onde Guimarães Rosa conta sobre a epidemia de tuberculose no sertão mineiro.

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