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Quinta, 05 de julho de 2018

A saga amazônica do desmatamento

No quarto episódio de “o ambientalista”, Neylor Aarão mostra o papel dos índios como olheiros da maior floresta tropical do planeta, cujo desmate gera mais co2 que o total de carros em circulação no Brasil

Neylor Aarão



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PARAGOMINAS: passado de devastação fez surgir uma nova realidade ambiental. Foto: Reprodução

PARAGOMINAS: passado de devastação fez surgir uma nova realidade ambiental. Foto: Reprodução

O desmatamento é uma preocupação mundial. Não se justifica mais promover o desmate em nenhuma situação, muito menos para agricultura ou pecuária, uma vez que hoje há inúmeros outros meios de assegurar a produtividade e a eficiência nesses setores.

Eu decidi investigar por que o desmatamento na Amazônia ainda mantém índices de crescimento tão alarmantes. Viajei até Paragominas, no Pará, cidade que ficou conhecida por enfrentar e combater o desmatamento, depois de liderar, por anos, a lista dos municípios com maior número de assassinatos no Brasil.

Um dos meus primeiros entrevistados na cidade foi o engenheiro agrônomo Murilo Villela Zancaner. O pai dele, médico formado em São Paulo, chegou a Paragominas como colonizador. “Veio para abrir uma fazenda. Não tinha nada aqui em termos de estrada, médico ou condição. Era tudo floresta. Eles desmatavam, queimavam e plantavam capim. Aí, começava a pecuária.”

O processo de colonização da Amazônia ficou muito conhecido pelo slogan “integrar para não entregar”. Para entender a relação desse lema como o desmatamento na região, decidi procurar o Ministério Público Federal.

O procurador da República Daniel César Avelino lembra que o incentivo à ocupação da Amazônia remonta à época da ditadura militar no Brasil, quando muitos recebiam incentivos financeiros para se estabelecer na região.

“Era oferecido financiamento em bancos públicos para você abrir a floresta. A questão principal era ocupar a Amazônia para não a perder, e isso foi feito da pior forma possível, de maneira predatória. Na época, não se pensava quais seriam as atividades que poderiam ser desenvolvidas em harmonia com a riqueza natural da região”, afirma.

 

Suposto desenvolvimento

Em anos de devastação, cada árvore que tomba escreve uma história, “paga” o preço do suposto desenvolvimento. Para Avelino, o Brasil só começou a repensar a ocupação da Amazônia a partir da ECO-92, realizada no Rio de Janeiro.

Começava ali, a criação de um novo arcabouço, de um novo conjunto de leis que tornaram o desmatamento mais difícil, graças a regras mais rigorosas e, principalmente, à sua criminalização.

O pecuarista Gastão Filho foi um dos que chegou à Amazônia atraído pelas facilidades de crédito, benefícios e incentivos fiscais. “Havia muito também de idealismo, uma certa poesia de que estávamos participando da última aventura do mundo.”

O desafio de desbravar e colonizar a região também moveu os interesses do pecuarista. Hoje, cerca de dois terços da área desmatada na Amazônia é ocupada pela pecuária e pastos.

“Os conceitos eram completamente diferentes daqueles que temos hoje. Antes, imperava o integrar para não entregar. Quanto mais derrubasse, mais você era dono da área. Só depois começou a se a falar em preservação.”

Os conflitos e enfrentamentos por posse de terras também dominavam a região, relembra Gastão. “Teve muito conflito, com mortes por tentativa de invasão de áreas. Tanto que Paragominas ganhou o apelido de ‘Paragobalas’.”

 

Modelo de eficiência

Na fazenda do pecuarista Mauro Lúcio, considerada modelo na eficiência de criação de gado, procurei entender como conseguiam produzir seis vezes mais do que em uma propriedade centrada em prática extensivista e com derrubada de floresta.

“Meu avô desmatou Mata Atlântica; meu pai, Floresta Amazônica... Na época deles, isso era sinônimo de desenvolvimento, não faziam isso por maldade. Eu também desmatei quando cheguei aqui, não tinha sentimento ambiental de que estava fazendo algo errado.”

Em razão da exploração inadequada dos recursos da floresta, a situação na região se tornou caótica. Mauro Lúcio lembra que, no começo dos anos 1980, imperava a pecuária de baixíssima rentabilidade e produtividade, com as fazendas atingindo altos níveis de degradação. “O desmate começou com a pecuária extensiva. A madeira veio depois. Sua valorização ‘explodiu’ por volta de 1986, permanecendo até a década de 1990.”

Pesquisador-sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Paulo Barreto salienta que, na década de 1990, bastava montar uma serraria simples para ter um lucro líquido de US$ 250 mil/ano. Considerando o câmbio atual, o montante equivaleria a cerca de R$ 1 milhão/ano. “Era uma renda líquida fantástica, por isso, milhares de serrarias se instalaram na Amazônia naquela época.”

“A floresta é assaltada e maltratada por grileiros apoiados em pistoleiros, na ação do crime. Isso sem contar o garimpo, principalmente no Oeste do Pará, atividade que também atrai a prostituição, o tráfico de drogas e criminosos fugidos da Justiça. Estão todos lá nos garimpos, onde também há trabalho escravo”, afirma o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Luciano de Menezes Evaristo.

Segundo ele, tanto o garimpo quanto o desmatamento e toda a ocupação criminosa de terras que ocorre na região têm consequências gravíssimas para a população, que também sofre com a ausência do poder público.

“Desmatar rende mais do que traficar cocaína, atividade que não recebe a devida atenção do Estado brasileiro. Uma árvore de mogno é derrubada e vendida por R$ 20. O atravessador pega essa mesma árvore e vende cada metro cúbico por R$ 1.200.”

Prefeito de Paragominas, Paulo Tocantins reconhece que cerca de 20 anos atrás, a cidade era conhecida como a ‘capital’ da pistolagem, da devastação e da prostituição: “Paragominas simbolizava tudo o que era ruim no Pará. Com o declínio da indústria madeireira, em meados dos anos 1990, começamos a nos perguntar o que seria da nossa cidade sem essa atividade. Só tínhamos dois caminhos: ir embora ou reassumir a política da cidade e fazer algo diferente”.

A ineficiência no combate ao desmatamento e a ausência de fiscalização efetiva seguem estrangulando a região. A situação só não é pior graças à presença dos índios.

“Os melhores olheiros do Ibama na Amazônia são os índios. Hoje, dos 800 brigadistas que temos, 600 são indígenas. Eles deveriam ser remunerados por isso. Afinal, índio não vive de espelhinho, de colarzinho não. Eles me passam informações é por WhatsApp, querem manter a floresta em pé. Lidar com os índios requer mudança de mentalidade. Eles têm de ser tratados como parceiros”, salienta o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Luciano Evaristo.

A origem de todo mal

Ainda que a passos lentos, algumas mudanças e avanços vão se consolidando. Um exemplo é a própria dinâmica do mercado, exigindo que serrarias com atuação na Amazônia atestem a regularidade e a adequada origem das madeiras vendidas.

“Do contrário, pode ocorrer o efeito dominó e haver retaliação na empresa compradora”, explica o presidente do Sindicato das Indústrias de Serrarias de Paragominas (Sindiserpa), Fábio Alves dos Santos.  Trata-se, sobretudo, de uma questão de sobrevivência. Afinal, quem não se adequa não sobrevive ao mercado. “Você corre o risco de perder seu patrimônio, de responder a processo. Não vale a pena arriscar.”

Questionado sobre o que acontece, caso fiscais cheguem a uma serraria e encontrem madeira ilegal em pátios, Santos afirma que a empresa é imediatamente boqueada no sistema de controle.

“Além disso, as madeiras irregulares são apreendidas e, até se adequar, a empresa vai ser multada. Com isso, algumas podem nem voltar mais a funcionar. Depende da gravidade da situação.”

O responsável por desmatamento ilegal pode ser responsabilizado de três formas. Quem esclarece as formas de punição é o coordenador-geral de Fiscalização Ambiental do Ibama, Jair Schmitt. A primeira é administrativamente, cujo papel cabe ao Ibama e aos demais órgãos de meio ambiente.

A segunda é criminalmente, ou seja, por meio de medidas punitivas determinadas pela Justiça, envolvendo ainda investigação da polícia e do Ministério Público. Por fim, vem a punição na esfera civil, geralmente por meio de ação judicial imposta para reparação de danos.

“Nossa primeira linha de trabalho são as operações em campo, a partir de alertas de desmatamento que recebemos, gerados pelo sistema de monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em tempo real. Quando identificamos alguma área desmatada, as equipes de campo entram em ação para conter o avanço do desmatamento, apreendem equipamentos, embargam área e tomam outras medidas punitivas”, frisa Schmitt.

 

Novo aliado

Criado pela Lei 12.651/2012, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um registro eletrônico obrigatório para todos os imóveis rurais. A partir dele, vem sendo formada uma base de dados estratégica para o controle, monitoramento e combate ao desmatamento das florestas e demais formas de vegetação nativa do Brasil.

Na Amazônia, o CAR tem se mostrado um importante aliado, auxiliando na fiscalização, sobretudo do ponto de vista do desmatamento destinado à abertura de áreas pela agricultura e pela pecuária. 

“Antes de comprar o gado, somos obrigados a verificar sua origem. Consultamos o CAR da fazenda fornecedora, para saber se ele é produzido a partir de área desmatada. Se houver desmatamento na fazenda de origem, não posso comprar o gado. O sistema bloqueia e a gente pode ser multado”, explica o engenheiro agrônomo Murilo Villela Zancaner.

Questionado se há formas de burlar o sistema de controle associado ao CAR, Zancaner é direto. “Jeito tem. Sabemos de fazendeiros que usam o CAR de outra fazenda... Mas, agora, estamos com um sistema de rastreamento por satélite, que identifica o caminhão e a fazenda onde ele será carregado, tudo para evitar fraudes ou conflitos.”

O avanço no controle, assegurando pelas possibilidades oferecidas pelo rastreamento por satélite, é ressaltado pelo diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Luciano Evaristo. “Dá para comprar imagens com até um metro de resolução, mapear toda a área degradada e fazer o nosso trabalho sem sair daqui, sem tomar um tiro. Fica até mais barato do que acionar o helicóptero do Ibama e destacar agentes para a operação. A tecnologia do satélite está aí, ao nosso alcance. Estamos muito perto de contar bois no solo.”

Eu sobrevoei Paragominas acompanhado por um fazendeiro local. O que vi lá de cima reforça o que apontam os dados mais recentes: o desmatamento no Brasil continua em ritmo acelerado. Uma realidade preocupante, pois já provado que o desequilíbrio da Amazônia se reflete num desequilíbrio em escala global.

 

Dinâmica regional

De acordo com o pesquisador-sênior do Instituto Imazon, Paulo Barreto, o desmatamento agrava a mudança do clima e tende a afetar a dinâmica regional, levando à seca. Hoje, um terço das emissões de CO2 (gás carbônico) do Brasil estão ligadas ao desmatamento e à mudança no uso e ocupação do solo. “O desmate da Amazônia gera mais CO2 que o total de carros em circulação no país”, compara.

A questão que segue sem resposta é por que a floresta continua sendo desmatada. Mesmo havendo conhecimento, fiscalização, tecnologia e acesso à informação. Para o pecuarista Mauro Lúcio, parte da resposta está na cultura do brasileiro.

“Queremos ganhar muito num tempo curto e o desmatamento dá esse retorno: as pessoas conseguem ganhar dinheiro muito rápido. Precisamos de mecanismos para conter o desmate desenfreado. Proteger e valorizar as áreas que já estão abertas, fazendo com que realmente produzam.”

Outro caminho viável, pontua Luciano Evaristo, do Ibama, é enxergar a verdadeira vocação da Amazônia e criar um modelo de desenvolvimento próprio para esse bioma, mantendo a floresta em pé.

“Se não buscarmos esse caminho, condenaremos todos os nossos descendentes à extinção. Teremos desertificação e uma série de catástrofes no mundo inteiro, por causa do aquecimento global. Preservar a floresta em pé é um grande negócio para o Brasil e para o mundo.”

Na próxima edição, o dilema da demarcação de terras indígenas na Amazônia.

 

Entenda melhor

Conforme divulgados pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE), o desmatamento na Amazônia caiu 16% entre agosto de 2016 e julho de 2017. No mesmo período do ano anterior (de agosto de 2015 a julho de 2016), a perda de florestas no bioma havia aumentado em relação ao ano anterior.

Apesar da queda, a área desmatada foi de 6.624 quilômetros quadrados, a maior parte no Pará (2.413 km²) e no Mato Grosso (1.341 km²). Entre agosto de 2015 e julho de 2016, o desmatamento totalizou 7.893 km².

A maioria das áreas desmatadas fica em terras privadas (61%), além de assentamentos (15%) e terras indígenas (2%).

 Além de Pará e Mato Grosso, a região da Amazônia Legal é composta por Acre, Amazonas, Amapá, Maranhão, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins.

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