Segunda, 07 de agosto de 2017

A era do imprevisto

O sociólogo Sérgio Abranches fala sobre a transição da humanidade em meio às mudanças climáticas

Luciana Lopes - redacao@revistaecologico.com.br



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Srgio Abranches:

Srgio Abranches: "A digitalizao e as mdias sociais so a salvao da democracia". Foto: Miriam Leito

Por que as sociedades se adaptaram tão bem ao avanço da tecnologia e, ao mesmo tempo, isso não aconteceu em relação à preservação do meio ambiente? Por que a política ainda não encontrou no meio digital uma forma de dialogar concretamente com a sociedade e, assim, permitir que ela possa refletir e fazer boas escolhas? A saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris provocará um retrocesso na segunda maior economia do planeta e é uma ameaça à natureza global?

“A Era do Imprevisto”, mais recente livro lançado pelo sociólogo, ambientalista e cientista político Sérgio Abranches não traz essas respostas. Sua contribuição é outra: dá subsídios, de forma positiva e abrangente, à discussão sobre as transformações e os rumos da sociedade em um século marcado pelas mudanças climáticas. Trata da readaptação social a um novo e urgente estilo de vida, para vivermos de forma equilibrada no planeta.

É o que a Revista Ecológico registrou, no início do inverno, ao acompanhar a participação de Abranches no projeto “Sempre um Papo” (sempreumpapo.com.br), do jornalista Afonso Borges. “Meu livro não se aplica a nenhuma sociedade em particular. É um ensaio geral sobre essa situação de transição da humanidade. A gente tem uma situação que é global, acontece em todos os países, e alguns dos processos são rigorosamente gl obais – a mudança climática, por exemplo, é um problema. Você emite gases de efeito estufa aqui e produz uma catástrofe na Antártida. Tem a ver também se nós estamos preparados para fazer as melhores escolhas para a transição”, afirmou Abranches, que também condena a influência das oligarquias na sociedade e prevê o fim dos partidos políticos.

A seguir, selecionamos alguns trechos de suas reflexões. Confira:

 

Perplexidade como base

“Esse livro nasceu com uma perplexidade: as grandes transformações que estão acontecendo na ciência e no clima. E tenta entender por que as sociedades se adaptaram tão bem à mudança tecnológica e, ao mesmo tempo, não reagem da mesma maneira à extinção da biodiversidade e ao aumento do aquecimento global. A quantidade de informação que as redes sociais torna disponível à sociedade indicava que o bom senso nos levaria a mais consciência e ação.”

“Levei cinco anos para escrevê-lo. Nos três primeiros, pensei que o título seria o ‘Complexo de Prometeu’, essa ideia de que nós somos capazes de domar a natureza, de colocá-la sempre a nosso favor. Então fiz algo que é comum para mim: quando a sociologia, a economia e a ciência política não me ajudam, vou até quem entende da alma humana: os escritores, a literatura. E fui estudar tragédia, para tentar entender como os atenienses conseguiram, através do teatro, ensinar Athenas a ter uma vida comunitária e coletiva virtuosa.”

 

A grande transição

“Nesse processo, eu me dei conta de que a questão era muito maior. Estamos diante de uma transformação gigante, com três eixos fundamentais: o socioestrutural, que atinge todo o planeta e tem efeitos sobre a estrutura social, econômica e política das sociedades. O científico e tecnológico, que se dá com o surgimento de novas fontes de energia e com a digitalização da sociedade. E o climático, que, pela primeira vez, nos coloca frente a frente com forças da natureza - as quais não somos capazes de controlar. Nesse caso, até nos parecemos um pouco com cidadãos da Idade Média, que não conseguiam controlar essas forças e atribuíam esse descontrole da natureza às divindades do mal.”

“Esses três eixos se interagem. A transformação social acontece por causa das mudanças científico-tecnológica e climática. Esta última, por sua vez, não só decorreu do avanço tecnológico da sociedade, mas cria condições para superar a questão ao transformar nossos padrões de produção e consumo. E, por outro lado, a economia começa a mudar por conta de todas essas transformações.”

“Estamos diante de uma transição tão radical que ela vai ser maior do que a da Idade Média para o Renascimento. Vai alterar radicalmente a nossa vida e a das próximas gerações. Estamos no ponto mais doloroso e desafiador desse processo: o intermediário, onde as coisas não funcionam direito e os modelos econômicos não conseguem fazer boas previsões, sobretudo de longo prazo.”

“Esses modelos não funcionam mais porque o mundo para o qual foram formatados, os paradigmas dos quais eles foram retirados estão desmoronando. O novo mundo não está maduro o suficiente para produzir os eventos e os efeitos necessários à construção de um novo modelo. É um momento de muita instabilidade e perdas importantes. Quando Ronald Reagan fez a sua política de austeridade e de mudança econômica, se estabeleceu um paradigma de administração de negócios lá, que depois se espalhou para o mundo, de que as empresas tinham que ser ‘magras e más’. Muita produtividade, o mínimo de trabalhadores, o mínimo de concessão para eles e o máximo de lucro. Isso acabou com 75 milhões de postos de trabalho. E criou um espaço na economia americana para um momento de crescimento. Quando os Democratas tomaram o poder nas eleições, eles começaram uma política de proteção social, de investimento diferenciado, que produziu a grande expansão da economia dos Estados Unidos que terminou na crise de 2008. Nesse período de expansão foram criados 135 milhões de postos de trabalho novos, quase o dobro do que foi destruído. Cinquenta por cento dos americanos no Governo Bill Clinton trabalhavam numa ocupação que não existia antes do governo. E esse é o problema.”

 

Mudanças tecnológicas

“Na mudança tecnológica, não nos damos conta do que foi a revolução que aconteceu na nossa vida desde o primeiro celular até os smartphones de hoje. Fomos nos adaptando, porque todo esse processo também é de aceleração da história e do nosso tempo. A quantidade de coisas que fazemos hoje é completamente impensável para uma pessoa do início do século XX. Vivemos uma mutação psicossocial e genética. A pesquisa genômica já descobriu mais de 5.000 alterações genéticas relevantes em nosso DNA do início do século XX para cá. E isso é natural que aconteça, pois temos de nos adaptar a mais poluição, à velocidade da vida e nossa estrutura vai construindo essas mutações. O processo de evolução é isso. Você tem de se adaptar para sobreviver.”

 

A sociedade digital

“A questão da sociedade digital é que ela comporta uma quantidade absurda de informação e cria condições para que você consiga viver nesse mundo. Aí você adapta seu modo de vida, a sua predisposição psicológica para a mudança. Somos seres muito mais adaptáveis do que as pessoas do mundo exclusivamente analógico do século XX. E a gente não se dá conta, porque somos adaptáveis, naturalizamos coisas espantosas.”

“Estamos em Minas Gerais, na terra do homem mais sábio que já existiu: Guimarães Rosa. Ele dizia: ‘O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia’. Ou seja, a qualidade do futuro é a qualidade da travessia.”

“Acho que a digitalização e as mídias sociais são a salvação da democracia. E aí tem muita gente que diz: mas lá só tem mensagem de ódio, notícia falsa, difamação. Esse é o pesadelo da rede. Mas há o lado virtuoso: tenho no Facebook um grupo que discute seriamente os problemas da democracia no Brasil e no mundo. Trocamos artigos, trabalhos, livros e formamos uma comunidade muito mais viva do que a acadêmica. E essa discussão ajuda a todos nós e é aberta a qualquer um. Basta não ofender ou não falar bobagens. Se a gente perde a capacidade de conversar digitalmente, porque uma parte da conversa é ofensiva ou interdita o outro, estamos jogando fora a saída para a construção de uma nova sociedade democrática no futuro, que é um dos nossos problemas.”

“O digital veio para criar mecanismos novos de representação popular. Essa conversação pública geral que ele proporciona vai criando a identidade de novos grupos e setores sociais que poderão ser representados de forma mais orgânica no futuro. A sociedade já se digitalizou. A economia se digitalizou e globalizou. A hegemonia saiu das mãos do capital industrial e foi para o capital financeiro. O capital financeiro se globalizou e se pulverizou. Hoje não tem mais banqueiro. Qualquer banqueiro hoje é demissível ad nutum, ele não é o proprietário do capital. Ele maneja dinheiro.”

 

Democracia representativa

“Ela está seriamente ameaçada, está perdendo legitimidade. Todos os partidos do mundo são controlados por oligarquias que não têm nada a ver com as suas bases sociais. Respondem apenas aos seus financiadores e aos grupos de interesse aos quais estão ligados. Se você for a qualquer sociedade e perguntar ‘você se sente representado?’, a maioria diz não. Por outro lado, os partidos que ainda tentam representar são de categorias da sociedade que estão acabando. Não são mais as categorias desprotegidas. Imaginem a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que representa a classe capitalista. Na verdade, ela não representa, porque a classe capitalista já desapareceu. Hoje o que se tem é um mercado financeiro globalizado hegemônico.”

“A faixa da sociedade que se amplia é aquela que não cabe nas categorias que já estão representadas e são difusas, ainda não estão socialmente organizadas e não têm identidade clara.”

“A população é teleguiada pelas oligarquias a tomar decisões sem saber o teor, a substância das decisões. Ela trabalha só na base das percepções. As oligarquias não revelam, não dão transparência, não põem em discussão. As audiências públicas no Brasil são todas fraudadas, em qualquer área. É jogo de carta marcada. E se você descobrir a hora e for lá com um grupo para questionar a audiência pública, eles melam. A forma de se fazer o povo ter escolhas conscientes é deixá-lo saber do que se trata, o que ele está escolhendo. Por isso defendo tanto a ideia de se abrir uma conversação. A democracia tem de ser aberta, onde a informação circule. E a política tem de se digitalizar. É a coisa mais fácil do mundo hoje disseminar a informação sobre o que vai ser decidido. Inclusive fazer consultas.”

“A democracia representativa, do jeito que ela existe, surgiu por causa do crescimento demográfico. Era impossível você consultar com a tecnologia da época todo mundo. Aí você escolhia um cara e dizia que ele iria representar a sociedade. Era um acordo. Hoje não precisa de ser assim. Pode ser melhor, transparente.”

“O conflito é bom, não é uma coisa negativa, significa o embate de ideias. O que é disfuncional, ruim e destrói a sociedade é a violência, a intolerância.”

 

Política

“A política se digitalizou? Zero! Quem usou mais tecnologia digital na política recentemente? O Barack Obama, na campanha presidencial em que ele fez um crowdfunding. Entretanto, ele governou analogicamente. A política ficou analógica e a sociedade se digitalizou. Para ela se reconciliar com as pessoas, tem de se digitalizar.”

“A ideia de se ter uma forma de conversação pública, que se possa discutir com todo mundo de forma civilizada os problemas da sociedade e encaminhar soluções para que o governo saiba para que lado ela quer ir, e ao mesmo tempo, se possa usar essa conversação para informar os mecanismos de representação adequadamente das correntes sociais e das opiniões, é uma das maneiras de salvar a democracia.”

 

Brasil míope

“Meu livro não se aplica a nenhuma sociedade em particular. É um ensaio geral sobre essa situação de transição da humanidade. A gente tem uma situação que é global, acontece em todos os países, e alguns dos processos são rigorosamente globais – a mudança climática, por exemplo, é um problema. Você emite gases de efeito estufa aqui e produz uma catástrofe na Antártida. Tem a ver também se nós estamos preparados para fazer as melhores escolhas para a transição. O Brasil tem tido governos anacrônicos há bastante tempo. Em vez de admitirem que a globalização é uma realidade que temos de nos adaptar e precisamos aproveitar, adotam medidas mais nacionalistas, mais protecionistas e que deixam o Brasil mais vulnerável à crise.”

“Tanto o governo brasileiro quanto o americano e o francês são financiados pelo capital financeiro global. Não tem mais capital nacional no mercado financeiro. Se adoto medidas que vão de encontro às tendências do mercado globalizado, esse capital foge e me produz uma grande recessão. E isso custa muito caro. A esquerda ainda não entendeu que há um limite nessa transição que será superada de alguma forma no futuro, que é o limite do equilíbrio fiscal.”

“O Brasil gasta US$ 1 bilhão por ano subsidiando carvão do sul do Brasil que não serve para praticamente nada. É um carvão de péssima qualidade. É criminoso fazer mineração desse carvão, porque é extraordinariamente tóxico. Ele devia ficar

no solo.”

“O Brasil hoje dá mais dinheiro para empresas grandes que empregam pouco do que para empresas médias e pequenas que empregam muito. Não dá incentivo para inovação tecnológica nas empresas médias e pequenas e damos incentivo para as empresas grandes ficarem sem inovação tecnológica.”

“Noventa por cento dos financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) são exclusivamente para empresas que não deveriam ser financiadas com dinheiro público. Se eu fosse eleito presidente da república, a primeira coisa que iria fazer é cortar todos esses subsídios e gastar o dinheiro em saúde e educação, que estão aos frangalhos. É um problema de prioridade. Essa é a luta política que o Brasil não sabe fazer. Ele engana. Não tem um governo no Brasil que tenha feito isso decentemente. Pode até ter feito mais pelo social, mas manteve os subsídios ao capital.”

“No Brasil, há uma coisa arraigada de proteger o capital nacional. Aí você dá bilhões de dólares à JBS para ela comprar empresas nos EUA para dizer que é a maior empresa de carne do mundo. E daí? Não gera emprego pra gente e paga propina para praticamente todo o mundo político brasileiro. Qual é a vantagem? Precisamos de fazer melhores escolhas no Brasil.”

 

Oligarquias

“Precisamos fazer mudanças mais profundas e isso não vai acontecer se a sociedade brasileira não impuser essas mudanças. Temos de ir para a rua e dizer ‘basta’ aos políticos. Mas não podemos fazer isso divididos como estamos. Se não nos sentimos representados, temos de dizer: não queremos vocês!”

“Há regras que precisam ser mudadas. Por que as oligarquias se perpetuam? Elas usam qualquer álibi para mudar as regras a seu favor. Quando Collor se elegeu, ficou claro que ele era uma fraude. Puseram a culpa nas regras de campanha, porque o tempo de televisão é igual para todos os candidatos. Mudaram essas regras para impedir que um aventureiro como ele volte a ser eleito presidente. Aceitamos isso, dizendo que éramos indignados com Collor. Vejam bem: qual é a definição de aventureiro? O avô dele era político, o pai também e ele tinha sido governador. Collor era um político profissional. Mas aí mudamos: o maior tempo de campanha na TV teria de ser para quem fez a maior bancada nas eleições passadas. Os instrumentos de campanha são dados para aqueles que já ganharam, logo os que nunca ganharam não podem entrar. Se quisermos montar um partido para disputar as eleições e escolher a Carmen Lúcia para concorrer à presidência do Brasil, ela vai ter menos de um minuto de tempo de TV. Imaginar que as elites políticas brasileiras vão mudar as regras a seu desfavor é uma ilusão total. Quem muda as regras do jogo nesse caso tem de ser a sociedade. A gente caminha para uma Assembleia Constituinte, uma nova Constituição.”

 

Globalização

“Ela é inexorável, para sempre e vai se aprofundar. O Estado Nacional é que vai se esvaziar, não tem muita função para ele nesse processo. Vamos ter muita relevância local, as cidades vão se tornar mais importantes e a democracia vai se enraizar nelas. Não sei como vai ser a ideia de nação no futuro, mas o Estado Nacional não será mais tão poderoso quanto foi no século XX. Vários problemas serão resolvidos em fóruns globais e outros no plano local. É o que os ambientalistas chamam de grow local, isso irá se generalizar. A democracia funciona melhor em menor escala, com mais descentralização.”

 

Virtualidades desaproveitadas

“A transição está correndo e estamos ficando para trás. E isso com todas as virtualidades que temos para o século XXI. Estamos no século da biologia e somos o país da biologia. Temos a maior biodiversidade do mundo em terra. Vivemos uma crise de água, mas ainda temos água. Inclusive, estamos cuidando muito mal dela. E temos muito talento desperdiçado.”

 

Donald Trump

“Qual a consequência de Donald Trump sair do Acordo de Paris, do ponto de vista concreto das emissões americanas? Zero. Porque a economia americana já fez boa parte da transição de descarbonização. É claro que algumas coisas nessa transição são ruins, como o gás de folhelho, cuja retirada é ambientalmente agressiva. Do ponto de vista climático, ele é interessante porque é barato e emite pouco. Mas é um combustível de transição. A Califórnia está solarizada, o Texas também (e avança com a produção de energia eólica), os carros elétricos estão ganhando mercado. Na verdade, as emissões americanas já estão abaixo da meta de Paris. Os EUA fora do Acordo de Paris já obedeceriam às metas do acordo. É um tropeço, mas não é uma queda.” 

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